Alô, Estado laico!
Trata-se como normal o lobby católico no STF e no MPF, mas o mundo vem abaixo com uma "abortista" no governo.
Faz alguns anos, vi um carro com placa oficial de alguma Casa Legislativa, fosse Assembleia estadual ou Câmara de vereadores na Marginal Tietê com um adesivo do peixe cristão no para-choque traseiro. Comecei a esbravejar: o carro era oficial, pago com dinheiro público, não podia ser usado para propaganda religiosa! Minha mulher me olhou de soslaio e disse: "Poxa, larga a mão de ser chato".
Estava eu sendo chato? Suponho que sim. Principalmente com as pessoas que estavam perto de mim, que certamente preferiam ouvir o rádio ou conversar sobre o escândalo político da vez a engolir minha diatribe. Se eu realmente quisesse fazer algo a respeito, poderia simplesmente anotar placa, modelo, etc., e fazer uma denúncia formal à ouvidoria competente, ou ao Ministério Público.
Mas agora, em meio ao furor histérico dos religiosos em torno da nomeação de Eleonora Menicucci para a Secretaria de Políticas para as Mulheres, eu me lembro de quando, como e por qual motivo fiquei chato desse jeito. Por que passei a ver coisas como crucifixos em tribunais como ameaças à democracia, e não mais como artefatos inócuos de valor histórico e cultural.
Foi quando a procuradoria-geral da República tentou proibir as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. O procurador-geral, autor da ação, era Claudio Fontelles, católico fervoroso hoje, aposentado, ele dá aula num curso de Teologia da Arquidiocese de Brasilia. Desde o primeiro momento estava bem claro que, nesse caso, a Procuradoria-Geral da República havia sido sequestrada pela agenda do Vaticano: que o fiel católico usava a máquina do Estado para tentar impor ao país as doutrinas de sua fé. Coisa que a própria Advocacia-Geral da União acusou, indiretamente, ao afirmar que "as teses usadas na ação estão embasadas na doutrina católica. Não podem servir de parâmetros para análise" num Estado laico.
E ninguém fez nada a respeito. Niente. Zip. Zero. Nenhum editorial na grande imprensa, nenhuma manifestação de lideranças, partidos, OABs. Silêncio explosivo, estrondoso. "O que é preciso para esse pessoal se mexer?", pensei cá comigo. "Um procurador muçulmano tentar proibir o biquíni?"
Mas, no fim, depois de causar lá seus danos e atrasos à ciência brasileira, a proposta de Fontelles foi derrotada no STF. Que, na época, contava com um "representante do Vaticano", o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, cuja indicação pelo então presidente Lula teria sido fruto, entre outras coisas, de um forte lobby católico.
E, de novo, todo mundo deu de ombros! Se o Bush ou o Obama viessem dar palpite na composição do STF, e a opinião fosse acatada pelo governo, ia ter gente nas ruas pedindo impeachment seguido de guerra com os gringos. Já o Vaticano (que, quando lhe interessa, posa de Estado estrangeiro soberano) pode, o presidente da tal "política externa soberana" obedece, e está tudo bem.
Foi aí que concluí que estava faltando gente chata no Brasil. Um chato para chamar atenção para o seguinte ponto: por que a imprensa brasileira que tratou como normal a vamos usar um pouco de linguagem conspiratória? "infiltração papista" no STF e no Ministério Público Federal, agora se escandaliza com a presença de uma única e solitária "abortista" assumida no primeiro escalão do governo?
Talvez porque a infiltração papista (e agora também evangélica) seja mesmo normal, no sentido de usual, comum, frequente, não excepcional. O que só mostra como estamos longe do ideal da laicidade, e como os chatos são necessários.
Agora: não se trata, veja bem, de condenar a presença de pessoas desta ou daquela fé nesta ou naquela posição de Estado, e sim de condenar o uso dos recursos do Estado para promover as posições desta ou daquela fé. É a diferença entre ter um presidente corintiano e usar dinheiro público para construir um estádio para o Corinthians. A primeira situação é totalmente legítima. A segunda bom, deixa pra lá.
Gostaria de terminar este artigo sugerindo que, da próxima vez que o governo nomear uma figura de claro perfil evangélico ou católico para um cargo de destaque, nós secularistas façamos uma campanha tão sórdida, barulhenta e deselegante como a que está sendo movida contra a ministra Menicucci. Gostaria de terminar assim, mas não terminarei. Não seria um apelo sincero. Ser chato já virou coisa necessária. Mas ser escroto, felizmente, ainda é opcional.
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