Caderno Aliás, página J8
São Paulo, BR - domingo, 29 de maio de 2011
DEBORA DINIZ
A história ainda é nebulosa.
Parece um daqueles eventos políticos em que os fatos são piores que os rumores.
O teatro público foi o seguinte: o Ministério da Educação anunciou a
distribuição de materialdidático de combate à homofobia nas escolas de
ensino médio; um grupo de parlamentares evangélicos reagiu ao que foi descrito como kit gay e pressionou o governo contra a iniciativa; a presidente anunciou o veto ao material didático do MEC.As breves palavras da presidente sobre o ocorrido se resumiram a não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais . O difícil de entender
é como o materialdidático de combate à discriminação seviu reduzido à propaganda de opções sexuais.
Não arrisco dizer que essa foi a primeira grande polêmica do governo Dilma,
mas pressinto uma atualização da patrulha moralista que a perseguiu durante a campanha presidencial.O primeiro capítulo desse teatro parece ser o único a sobreviver como relato oficial da história. O MEC produziu um material
didático para a sensibilização e o combate à homofobia nas escolas de ensino médio. O diagnóstico do MEC é simples: a homofobia mata, persegue e violenta aqueles que estão fora da norma heterossexista de classificação das
sexualidades. Um adolescente gay tem medo de ir à escola e ser discriminado.
Há histórias de abandono escolar e de suicídio.Uma das personagens do vídeo
original do MEC se chama Bianca,uma travesti que sai do armário ainda no
período escolar. Seu primeiro ato de rebeldia foi pintar as unhas dever
melhor e irà escola.
A ousadia rendeu-lhe um ano de silêncio familiar.
Ainda não entendo a controvérsia em tornodesse material.O puritanismo que
crê ser possível falar de sexo e sexualidades sem exibir práticas e
performances foi respeitado pelo material do MEC.Bianca é uma voz
desencarnada em um vídeo sem movimento. Não vemos Bianca em ação, conhecemos apenas o seu rosto. Só sabemos que Bianca existe, quer irà escola e sonha em ser professora.Ela insiste que para ser professora precisa ir à escola. Mas ela depende da autorização dos homens homofóbicos de sua sala de aula, que ameaçam agredi-la. Bianca agradece às suas professoras e colegas que a reconhecem como uma estudante igual às outras. Sozinha, a escola pode ser um espaço aterrorizante.
O segundo capítulo da história é mais difícil de acreditar. Grupos
evangélicos teriam substituído a história de Bianca por um vídeo vulgar, uma
fraude grotesca cometida por quem não suporta a igualdade sexual.Em
audiência com a presidente, teriam entregado o vídeo e, ao que se conta,
aproveitado a ocasião para conversar sobre a crise política que ronda o
ministro da Casa Civil, Antonio Palocci.
Entre as peripécias de Palocci, as travestis em ato sexual e o fantasma da
homossexualidade, a reação da presidente foi suspender o material didático do MEC. O surpreendente não está no uso de mentiras para a criação de fatos políticos,mas na proeza de os grupos evangélicos terem conseguido convencer a presidente de que sua equipe de governo do MEC seria tão medíocre na seleção de materialdidático para as escolas públicas.
Se a presidente assistiu aos vídeos reais ou aos fraudulentos, não importa.
O fato é que foi anunciado o veto ao material didáticodo MEC uma vitória
para os conservadores, que não sossegam desde que o Supremo Tribunal Federal
reconheceu a igualdade sexual em matéria de família. Mas há uma injustiça
covarde nessa decisão. O tema do material era a homofobia, algo diferente de propaganda de opções sexuais. Na verdade, jamais assisti a um vídeo de
propaganda de algo tão íntimo e da esfera da privacidade quanto a opção ou o
desejo sexual consentido.
Homofobia é um crime contra a igualdade, viola o direito ao igual
reconhecimento, impede o pleno desenvolvimento de um adolescente. Homofobia é o que faz Bianca ter medo de ir à escola.
O verdadeiro material do MEC tem um objetivo claro: sensibilizar professoras
e estudantes para a mudança de mentalidades.
Uma sociedade igualitária não discrimina os fora da norma heterossexista e
reconhece Bianca como uma adolescente com direitos iguais aos de suas
colegas. Mas, diferentemente do fantasma conservador, a mudança de
mentalidades não prevê uma subversão da ordem sexual os adolescentes não
serão seduzidos por propagandas sexuais a abandonarem a heterossexualidade.
A verdade é que o material do MEC não revoluciona a soberania da moral
heterossexista,mas contesta a falsa presunção de que a homofobia é um
direito de livre expressão. Homofobia é um crime contra a igualdade sexual.
DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS
INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
Fonte: O Estado de S.Paulo
Autor: Equipe Anis
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