27/05/2011

Estado laico. O que é isso, companheira?

Carta aberta de Católicas pelo Direito de Decidir à Presidenta Dilma
Rousseff sobre a polêmica criada em torno do kit anti-homofobia

Presidenta Dilma,
...

Estamos estarrecidas! A polêmica criada em torno do kit anti-homofobia
e o recuo do governo federal ante as pressões vindas de alguns dos
setores mais conservadores e preconceituosos da sociedade nos deixou
perplexas. E temerosas do que se anuncia para uma sociedade que
convive com os maiores índices de violência e crimes de morte
cometidos contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e intersex (LGBTTI) do mundo. Temos medo de um retorno às
trevas, senhora Presidenta, e não sem motivos.

A vitoriosa pressão contra o kit anti-homofobia da bancada religiosa,
majoritariamente composta por conservadores evangélicos e católicos,
em um momento em que denúncias de corrupção atingem o governo, traz de
volta ao cenário político a velha prática de se fazer uso de direitos
civis como moeda de troca. Trocam-se, mais uma vez, votos preciosos e
silêncio conivente pelo apoio ao preconceito homofóbico que retira de
quase vinte milhões de brasileiros e brasileiras o direito a uma vida
sem violência e sem ódio. A dignidade e a vida de pessoas LGBTTI estão
valendo muito pouco nesse mercado escuso da política do toma-lá-dá-cá,
senhora Presidenta! E o compromisso com a verdade parece que nada vale
também.

Presidenta, convenhamos, a senhora sabe que o kit anti-homofobia é um
material educativo, que não tem por finalidade induzir jovens a se
tornarem homossexuais, até mesmo porque isso é impossível, como tod@s
sabemos. Não se induz ninguém a sentir amor ou desejo por outrem. Mas
respeito, sim. E ódio também, senhora Presidenta... ódio é possível
ensinar! Poderíamos olhar para trás e ver o ódio que a propaganda
nazista induziu contra judeus, ciganos, homossexuais. Porém,
infelizmente, não precisamos ir tão atrás no tempo. Temos terríveis
exemplos recentes de agressões covardes e aviltantes a pessoas LGBTTI
e o enorme índice de violência contra as mulheres acontecendo aqui
mesmo, em nosso próprio país.

Quando a senhora afirma, legitimando os conservadores homofóbicos, que
é contra a propaganda da "opção" sexual, faz parecer que alguém pode,
de fato, "optar" por sentir esse ou aquele desejo. Amor, desejo, afeto
não são opcionais, ninguém escolhe por quem se apaixona, senhora
Presidenta! Mas se escolhe ferir, matar, humilhar.

Quando a senhora diz que todo material do governo que se refira a
"costumes" deve passar por uma consulta a "setores interessados" da
sociedade antes de serem publicados ou divulgados, como estampam hoje
os jornais, ficamos ainda mais perplexas. De que "costumes" estamos
falando, senhora Presidenta? E de que "setores interessados"? Não se
trata de "costumes", mas de direitos de cidadania que estão sendo
violados recorrentemente em nosso país e em nome de uma moral
religiosa conservadora, patriarcal, misógina, racista e homofóbica.
Trata-se de direitos humanos que são negados a milhões de pessoas em
nosso país!

E "setores interessados", nesse caso, deveria significar a população
LGBTTI e todas as forças democráticas do nosso país que não querem ter
um governo preso a alianças políticas duvidosas, ainda mais com
setores "interessados" em retrocessos políticos quanto aos direitos
humanos da população brasileira.

O país que a senhora governa ratificou resoluções da ONU tomadas em
grandes conferências internacionais, em Cairo (1994) e em Beijing
(1995), comprometendo-se a trabalhar para que os direitos sexuais e os
direitos reprodutivos sejam reconhecidos como direitos humanos. No
entanto, até hoje pessoas LGBTTI morrem por não terem seus direitos
garantidos. Mulheres morrem pela criminalização do aborto e pela
violência de gênero.

Comemoramos quando uma mulher foi eleita ao cargo máximo de nosso
país. Ainda mais porque, como boa parcela da sociedade, levantamos
nossa voz contra o aviltamento do Estado laico, ao termos um uso
perverso da religião nas campanhas eleitorais de 2010 para
desqualificar uma mulher competente e com compromisso com a dignidade
humana. Antes ainda, levantamos nossa voz a favor do III PNDH, seguras
de que deveria ser um instrumento de aprofundamento do respeito aos
direitos humanos em nosso país. Agora não temos o que comemorar,
senhora Presidenta! Parece que o medo está, de novo, vencendo a
verdade. E a dignidade.

Infelizmente, temos de - mais uma vez! - vir a público exigir que os
princípios do Estado laico sejam cumpridos. Como a senhora bem sabe, a
laicidade é essencial à democracia e não se dá pela simples imposição
da vontade da maioria, pois isso resulta em desrespeito aos direitos
humanos das minorias, sejam elas religiosas, étnico-raciais, de gênero
ou orientação sexual. Não existe democracia se não forem respeitados
os direitos humanos de todas as pessoas. Impor a crença religiosa de
uma parcela da população ao conjunto da sociedade coloca em risco a
própria democracia, já que os direitos humanos de diversos segmentos
sociais estão sendo violados. Portanto, senhora Presidenta, não seja
conivente! Não permita que alguns setores da sociedade façam do Estado
laico um conceito vazio, um ideal abstrato.

Como Católicas pelo Direito de Decidir, repudiamos o uso das religiões
neste contexto de manipulação política e afirmamos nosso compromisso
com a laicidade do Estado, com a dignidade humana e nosso apoio ao uso
do kit educativo pelo fim da homofobia nas escolas brasileiras.

CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR

Nenhum comentário: