14/05/2011

A pobreza e a cor da pobreza

LUIZA BAIRROS

Os negros têm a oferecer suas estratégias de resistência ao racismo,
que, desde o período colonial, interpôs obstáculos à afirmação da
humanidade

Em "Leite Derramado", mais recente romance de Chico Buarque, há um
personagem que, ao se referir com ironia ao radicalismo de seu avô
abolicionista, afirma que ele "queria mandar todos os pretos
brasileiros de volta para a África".
Nessa visão, abolicionismo radical equivalia a se livrar dos negros.
De todo modo, após 1888, as elites brasileiras irão se comportar como
se os libertos, que as serviram por quase quatro séculos, não
estivessem mais aqui. Mas estavam, e por sua própria conta.
No início do século 20, eram frequentes os prognósticos sobre o
desaparecimento da população negra, que supostamente não sobreviveria
ao século.
Ao mesmo tempo em que se criticavam as soluções de laboratório
defendidas pelo ideário eugenista, em voga aqui e em muitos países,
também se apostava no embranquecimento via miscigenação.
Mais tarde, ao se debruçar sobre os resultados do Censo de 1940,
Guerreiro Ramos considerou "patológico" o desequilíbrio nas respostas
ao quesito cor, tendentes, em sua esmagadora maioria, a sobrevalorizar
a cor branca.
Na contramão dessa tendência, os dados censitários de 2010, há pouco
divulgados, confirmam o que já se delineava no Censo de 2001:
iniciativas de valorização da identidade, com origem nos movimentos
negros e hoje em processo de institucionalização, asseguraram a
maioria negra em uma população que ultrapassa 190 milhões de
brasileiros.
Nesse longo percurso de afirmação, as mudanças não se limitaram a uma
percepção de si mais positiva, exclusiva dos afro-brasileiros.
A consciência negra avançou em conexão íntima com a consciência social
como um todo. Não se trata, portanto, da mera substituição de um
segmento populacional dominante por outro, mas do reconhecimento de
que os valores do pluralismo ajudam em muito a consolidar nosso
processo democrático.
Contudo, ainda persistem dificuldades a serem enfrentadas.
Hoje, temos uma sólida base de dados, que mostra reiteradamente que
mulheres e homens negros estão entre os brasileiros mais vulneráveis,
numa proporção muito maior do que sua presença relativa na população
total.
Por isso, a priorização da erradicação da pobreza extrema pelo governo
da presidenta Dilma abre possibilidades inéditas de abordar rica e
diversificada experiência humana, que ainda precisa ser considerada em
toda a sua amplitude.
O sucesso das iniciativas de combate à pobreza extrema requer a
reversão de imagens negativas, a superação de práticas
discriminatórias e o redimensionamento dos valores de cultura e
civilização que, afinal, contra todas as expectativas, garantiram a
continuidade dos descendentes de africanos no país.
Quando o assunto é superação da pobreza extrema, é justo supor que os
negros tenham algo a dizer.
Segmentos empobrecidos de outros grupos raciais também o terão, é
certo. Mas os negros têm a oferecer suas estratégias de resistência ao
racismo, que, desde o período colonial, interpôs obstáculos
ideológicos e culturais à afirmação plena de sua humanidade -a base
das desigualdades de renda e de oportunidades que ainda vivenciam.
Assim, no atendimento a direitos básicos que articulam renda, acesso a
serviços e inclusão produtiva, é preciso tornar visíveis e valorizar
dimensões da pessoa e do universo afro-brasileiro que desempenham
papel decisivo na conquista da autonomia. Todos somos humanos, e a
resistência aos processos desumanizadores do racismo é, de longe, a
maior contribuição dos negros à cultura brasileira.
LUIZA BAIRROS é ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República.

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