Entre os três candidatos à Presidência mais bem colocados nas
pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra.
Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes
custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é
tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com
transgênicos ou células-tronco.
Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado
pela corrida eleitoral.
Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que
dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do
aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma
gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é
curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa
resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher
que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de
assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão
dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são
agravadas pela criminalização do procedimento.
O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade
brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar
melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma
gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.
Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto
inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a
arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez
indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a
incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou
praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono
por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem
sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de
perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a
prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as
classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para
abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido
pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.
O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua
criminalização. Por pressões da CNBB, o ministro Paulo Vannuchi
precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de
Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O
orajoso grupo das "Católicas pelo direito de decidir" reflete e
discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.
O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois
bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de
vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado
uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro
que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal,
o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da
história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do
Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre
o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até
o século 17.
A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao
declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de
pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens.
No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como
humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada
por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a
vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos
espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isso. Também não são
enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa
sepultura - modo como quase todas as culturas humanas atestam a
passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são
incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que
registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.
A ambiguidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na
condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo
HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África,
último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...),
tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o papa? Que não
façam sexo. A favor da vida e contra o sexo - pena de morte para os
pecadores contaminados.
Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade
sexual das mulheres.
Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros
cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das
mães - este é o ponto! - é inadmissível. Em mais de um debate público
escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que
faz sexo sem planejar filhos tem que aguentar as consequências. Eis a
face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o
castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo:
não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de
fetos com
malformações graves, não chegarão a viver poucas semanas). A obrigação
de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de
castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu
prazer sexual da missão de procriar.
20/09/2010
Repulsa ao sexo
18 de setembro de 2010 - Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo
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